Que “tabu”? (27/05/2010)
Haja o que houver, quando nasce um Fla-Flu as multidões se movimentam, mesmo que distantes de um Maracanã em horário de rush no meio de semana. Assim foi o jogo de ontem e, a se julgar o exótico horário da partida, estabelecido contra os interesses dos que freqüentam regularmente o estádio, vinte mil pessoas no Mário Filho formam um conjunto bem razoável em termos de presença. O Fluminense enfrentou seu grande adversário, dominou a partida por completo e conseguiu sua segunda vitória no campeonato brasileiro, com absoluta justiça. Mais do que isso, destruiu um “tabu” criado pela imprensa “oficial” do futebol carioca, o de não vencer clássicos recentemente – a maior parte deles terminou com empates. O resultado final, de dois a um, foi até pouco diante da completa superioridade Tricolor durante todo o match.
Antes da bola rolar, rumores davam conta de que nosso matador Fred poderia não estar em campo, devido a dores que sentira, mas que não foram ratificadas como problema pelos exames médicos. O artilheiro veio a campo, parecia visivelmente limitado do ponto de vista físico, mas, dado seu talento, é um problema para qualquer defesa adversária mesmo que esteja com as duas pernas imobilizadas. Foi dele o primeiro chute a gol, com cerca de trinta segundos. A bola foi longe, mas foi o cartão de visitas do que seria o jogo em seu primeiro tempo: o Fluminense tomando de assalto a intermediária da Gávea, praticamente sem réplicas. A distribuição em campo do time lembrou muito a do segundo tempo contra o Corinthians, quando perdemos mais jogamos muito melhor do que os mosqueteiros.
Volto a falar do público. Como tinha dito, tendo ocorrido a aberração do horário de sete e meia da noite, naturalmente seria impossível encher o Maracanã como ele merece. Por alguns instantes, voltei no tempo. O velho jogo de 1979, quando Paulo Goulart, monumental, defendeu o penal do camisa dez – mais à frente, o apoteótico drible de Cristóvão em Manguito, deixando o parrudo zagueiro da Gávea no chão, para depois fuzilar Cantarelli. Um três a zero de claudicar oceanos. Bem queria voltar no tempo e rever aquele jogo; dada a impossibilidade, nada melhor do que ver uma grande vitória no hoje, no agora. E a noite de ontem me concedeu um brinde à infância, como em tantas outras vezes, só que com a estranheza de ver os flamengos em bem menor número, calados, quase mudos diante de um time que não fez jus à sua tradição no clássico, dada sua total falta de reação frente à força do Tricolor.
Fred tinha chutado a primeira bola para fora; porém, mesmo longe das condições idéias, é um jogador que complica qualquer marcação adversária, ainda mais tendo como seu municiador Darío Conca, que costuma fazer boas apresentações contra o rubro-negro. E foi justamente num belo passe de Conca, depois de uma arrancada pelo meio-de-campo, que Rodriguinho recebeu pela direita do ataque na área, livre, e deslocou Bruno, tocando mansamente em diagonal no canto direito do goleiro. Um belo começo: marcar seu primeiro tento com a camisa sagrada das Laranjeiras justamente num Fla-Flu. Aberto o placar, o Fluminense mostrou que começa a entender o estilo Muricy: não arredou pé do ataque, não abdicou de marcar mais gols, impôs ostensiva marcação. Continuou a tentar. O jogo só voltou a ter relativo equilíbrio quase dez minutos depois, quando Vagner Love ia encobrir Rafael, mas o goleiro recuou, defendeu a tempo e evitou o empate. Por pouco tempo. O Fluminense estava disposto a vencer o jogo e tinha ótimas opções, a começar por Carlinhos, que caiu como uma luva na lateral-esquerda. O gol acabou não saindo, mas o Fluminense terminou o primeiro tempo com méritos, diante do poderoso campeão brasileiro, numa partida muito corrida.
Um a zero num Fla-Flu é nada, não garante nada. Assim, era preciso ampliar o placar na volta para o segundo tempo. A Gávea, mais ofensiva com duas alterações, queria a igualdade. Mas o craque faz toda a diferença. Dario Conca, de frente para gol e um lindo chute de chapa, com força, no canto direito de Bruno, indefensável. O segundo gol cobria o Fluminense de autoridade, e poderia dizer que o jogo se desenhou ali. Mas como, num Fla-Flu? Simples: não seria possível manter o ritmo dinâmico do primeiro tempo e, com a diminuição do ritmo de jogo, seria pior para os flamengos, em desvantagem no marcador. Mais ainda: num misto de nervosismo e violência, ex-jogadores como Toró e Fernando abusavam das faltas grosseiras – no final, o próprio Fernando foi expulso depois de verdadeira agressão contra Carlinhos, sem precisar sequer receber o cartão amarelo. Saudades de casa? Não importa. A partir da expulsão, coube ao Fluminense valorizar a posse de bola para garantir o resultado. Nos minutos finais, ainda restou o gol da Gávea, em cobrança de falta e falha nossa no golpe de vista de Rafael, que definitivamente não vive uma boa fase – o que muito me preocupa, porque alguns querem ressuscitar o beque-equipe como titular, para desespero de qualquer bom entendedor de futebol. De toda forma, o gol foi o último chute de uma partida que já estava decidida e muito bem jogada por nossa equipe. Basta dizer que até Marquinho quase fez um gol de cabeça. Estivéssemos com Fred num grande dia e maior poder de fogo, a goleada teria sido iminente.
Para completar, o desespero recolhido dos flamengos, ávidos por nos provocar com uma faixa que ironiza um verso de nosso hino. Nela, apologias a um hexacampeonato que não aconteceu, uma hegemonia conquistada à custa de distorções matemáticas e de calendário, mais a cereja do bolo: a palavra “Libertadores”, que não poderia soar mais imprópria depois de nova eliminação precoce da competição sulamericana, com direito a hecatombes imperiais. Não ficamos atrás: abrimos a nossa faixa com Renato Gaúcho e Assis, mais os vices que impusemos à Gávea em decisões. Ontem, o Fluminense foi o vencedor em campo, nas arquibancadas, na justiça e na história. Eles são um instante; nós, a eternidade. O Fluminense está vivo e, com Muricy, pode começar a trilhar os caminhos de uma grande campanha neste ano. Os grandes campeões da imprensa estão com o silêncio da derrota. Nós, com os passos humildes, progredimos. O Tricolor voltou. Eu vos pergunto: que tabu, amigos das Laranjeiras?
Que tabu era esse?
O da Gávea não perder jogos sob a arbitragem de Marcelo de Lima Henrique.
O Fluminense nasceu para desafiar paradigmas.
Paulo-Roberto Andel