Thursday, March 24, 2011

FLUMINENSE 3 X 2 AMÉRICA(MEX) - 23/03/2011


É que Marô fugiu (24/03/2011)

Que palavras ou frases são capazes de descrever a monumental vitória do Fluminense na partida de ontem por três a dois contra o mexicano América? Colossal? Oceânica? Um triunfo capaz de se propagar por gerações? Tudo o que se disser e escrever sobre a noite de ontem será pouco e raso, por mais triunfante que seja. O Fluminense venceu porque ontem não foi apenas a junção de uma camisa secular e vitoriosa, mais uma torcida apaixonada e um time com muita raça; na verdade, o Fluminense era todo uma atmosfera – então, eu vos pergunto: como descrever uma atmosfera? Impossível. O que resta é vivenciá-la.

Ferido de morte para muitos, exceto os nossos, e apenas contundido para outrem, o Tricolor entrou em campo para a batalha decisiva com tudo o que possa se chamar de revés fora das quatro linhas, mais os desfalques da equipe. À beira do campo, o novo assistente e treinador interino Enderson Moreira passava tranqüilidade e, de alguma forma, ele foi responsável por relembrar um dos momentos culminantes da minha vida de torcedor: eu tinha dez anos e vi o então interino Sebastião Araújo comandar uma vitória monumental num Fla-Flu por três a zero, com direito a Paulo Goulart silenciando Zico e a Gávea, com Cristóvão fazendo Manguito desabar em nocaute técnico pelo drible sofrido. Ares do passado a temperar o presente. E como este jogo teve a nostalgia como símbolo, como explicarei mais tarde. Nas arquibancadas, a falta de William e do Presidente Sussekind era outro revés. Mas Álvaro Doria estava escondido em algum lugar do Planeta Engenhão, o que poderia ser um trunfo.

Os treze mil maníacos não falharam nas arquibancadas. Vieram de todos os lugares: trabalho, faculdade, casa da sogra ou até mesmo fugindo da festa das netas, como foi o caso de minha amiga Marô. Os jovens leões foram impecáveis do início ao fim e, para quem não prestou muita atenção nas cadeiras vazias e mesmo nas informações contábeis, o susto era possível: o grito da massa Tricampeã era digno de cinqüenta mil pessoas. Cada um gritou por quatro. Um ou outro desafinou, como o sujeito barbudinho que resolveu encrencar com meu amigo Max Sodré, homem de moda que estava a fotografar os mágicos momentos de ontem; a querela surgiu porque o amigo estava com uma bela camisa da seleção Argentina – o país de Conca -, sendo rapidamente desfeita pela atuação da PM e pelo bom sendo do barbudo ao ver que os amigos do fotógrafo não estavam a fim de briga. Meu amigo Rafael também não fez por menos e, ao se encrespar com outro Tricolor, me impediu de ver o gol de empate marcado pelo veterano (e decisivo) Araújo – a seguir, os beligerantes se abraçaram, se beijaram e quase proporcionaram uma paixão entre iguais, abençoada pelo gol santo. A torcida estava com os nervos à flor da pele, por conta de todo o problema recente, mas gritava e apoiava como nunca. Foi um grande momento. Não lotamos o estádio e nem precisávamos disso. Quando se faz necessário, nosso eco troveja.

Nosso time entrou a todo vapor, com muita vontade e, até pela falta de alternativas, atacava com tudo e a defesa ficava desguarnecida. A todo momento, nossos zagueiros cruzavam bolas arriscadíssimas em frente aos atacantes mexicanos e isso fazia do jogo um ai-jesus. Curiosamente, o gol que tomamos não veio de um lance de maior risco, mas de um "balão" da própria intermediária do América; a bola quicou, Digão e Ricardo Berna se chocaram. O goleiro caiu com a bola na mão e ela se ofereceu livre para o gol de Sánchez, que tinha entrado na dividida. Tomamos o gol porque Berna saiu com excesso de vontade do gol. Não me cabe culpá-lo por tentar segurar a bola em vez de socá-la; sem os socos, ele garantiu em muitos momentos o heróico Tricampeonato em 2010. Foi uma pequena falha, em decorrência da pressão, que se transformou num longo azar. Esse lance não me trouxe qualquer nostalgia: Berna não é Ricardo Pinto.

Não bastasse toda a carga dramática, sair perdendo em casa era mais uma facada na jugular. Mas o Fluminense não desiste: luta até o último minuto. Antes disso, apenas cinco minutos depois, Gum disse a que veio e, com sua cabeçada raçuda na marca do pênalti, na velha jogada de cruzamento diagonal da direita feito por Conca, igualou o placar. O passado veio à tona: era Gum quem estava na área e nos salvou da derrota para o Internacional em 2009, quando o mundo decretava o falecimento do Fluminense. Era Conca que liderava a direita do ataque em bolas paradas para as cabeçadas de Cícero em 2008. Bons presságios à vista, com todo o vigor dos nossos jovens leões rugindo e urrando de leste a oeste do estádio. A partir do empate, ainda tivemos chances de marcar com Souza (que não esteve bem, mas lutou), Fred e Emerson (estes, ainda distantes do ritmo necessário de jogo). No fim, ainda houve tempo para Berna pegar o equivalente a um pênalti, quando defendeu maravilhosamente um chute de Montenegro à queima-roupa. Não conseguimos e descemos para o vestiário pensando em quarenta e cinco minutos de uma grande decisão. Aos poucos, sem que todos percebessem, o Fluminense desfraldava a bandeira da monumental vitória que, claro, só poderia vir caiada com as cores do improvável. A atuação de garra, atitude e vigor que ficou devedora frente ao Boavista estava sendo mais do que quitada. Ressalto a grande atuação de Valencia e a raça de Digão que, não se deixou abater pelo gol e nem pelo que viria à frente. Julio César foi Julio César, mas a torcida soube poupá-lo, sábia que foi.

O segundo tempo foi Tricolor, amigos. Não há o que questionar. Os mexicanos jogaram com dez em seu campo durante toda a primeira metade da fase final. Martelávamos, tentávamos, buscávamos espaço e nada: o chute não saía, a cabeçada não chegava perto. Só a vitória poderia nos redimir, mas nada é fácil para o Fluminense: tudo tem o aroma do sofrimento e da luta. E, num momento em que éramos senhores absolutos da partida, aconteceu uma tragédia: Sánchez, novamente, ao tentar cruzar da esquerda, acabou acertando a bola na direção do gol e encobriu Berna; Digão tentou cortar já em cima da linha, mas a bola já tinha seu destino traçado. Nostalgia: era Lico encobrindo Paulo Victor em 1981. O América passou à frente no marcador a vinte minutos do fim do jogo, o que nos eliminaria da Libertadores. Pela primeira vez o estádio foi tomado pelo silêncio – a derrota era a própria morte se avizinhando. Era? Evidentemente, não. O Fluminense não perde nenhum jogo por decreto, vontade da imprensa ou outras baixarias. Recomeçar.

Foi então que os supostos coadjuvantes se tornaram protagonistas e escreveram uma das mais belas páginas da literatura Tricolor. He-Man (que substituiu Emerson) já tem atuado com muita raça e valentia, além de ter feito vários gols, mas Araújo (que entrou em lugar de Júlio César) e Deco (no lugar de Mariano, contundido) eram dúvida sobre o que poderíamos esperar daquilo que pareceria um milagre para times comuns, mas não para o Fluminense. Resposta pronta: decidiram. O Luso tinha jogado com excelência pela última vez contra o São Paulo, na maravilhosa vitória em Barueri, e vinha de longa inatividade. Mostrou o que era preciso: classe e categoria no cruzamento da direita do ataque, já dentro da grande área. Alçou com maestria. Araújo deslocou o goleiro, cabeceando com enorme categoria no canto esquerdo do goleiro Naverrete. A implacável nostalgia aconteceu de novo: pensei em Aldo e Assis destroçando Fillol em 1984. Leo gritava na arquibancada que iríamos virar. Calei e acreditei.

O final de jogo foi daqueles que só os torcedores do Fluminense vivenciam. Um pinga-pinga após cruzamento da direita, a bola bate nas cabeças de Fred e He-Man. Deco aparece pela esquerda no bico da pequena área, dá um toque de gênio e encobre Navarrete. A bola quica mansamente em cima da linha e ganha as redes. Leo estava certo. Não foi de cabeça, mas reparem o quanto o gol de Deco tem a ver com o de Antonio Carlos em 2005. Três a dois, gol aos quarenta e um do segundo tempo quando tudo parecia perdido; a nostalgia me vence com sobras: 25/06/1995. Longe do Engenhão, irritados editores ordenaram: “Bota qualquer porcaria aí nessa manchete”. Hoje, testemunhei primeiras páginas tímidas em relação à monumental vitória de ontem. Eles acusaram o golpe: lembraram da corrida solitária de Renato naquele outro três a dois.

O Fluminense nasceu para subverter o óbvio e desafiar paradigmas. Ou simplesmente justificar com galhardia a fuga da Marô da festa das netas. Ontem, um lindo capítulo desta história infinita foi brilhantemente redigido. Não é que sejamos tomados pela empáfia do outro lado da zona sul, longe disso. Nada foi ganho, a situação ainda é muito difícil e a classificação à segunda fase ainda é um sonho; entretanto, ninguém vai apagar da memória este maravilhoso jogo Tricolor, honrando sua eterna sina: frente a frente com o perigo de morte, passou por cima dele como um trator vigoroso. É lógico que queremos a classificação, mas sabemos das dificuldades. O que quero dizer é que esta não foi apenas uma vitória monumental, como milhares que já tivemos. Tratou-se de um triunfo que salvou o ano e a dignidade da camisa das Laranjeiras. Dez minutos de futebol de Deco que valeram uma temporada.

Enderson Moreira deve ter sentido uma grande emoção. Ele sabe que nem com um milhão de reais na mão é possível comprar uma vitória como essa que o Fluminense impôs ao América do México. Nós não comemoramos antes da hora; esperamos até o último minuto. Talvez não seja apenas pela sina; também temos um pequeno desejo de irritar a oposição. Tem sido assim desde um outro fatídico três a dois: o de 1912. O amarelo do uniforme do América me lembrou de outra coisa, mas isso já não tem a menor importância.


Paulo-Roberto Andel

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