Fiquei observando a televisão de forma ocasional.
Era um jogo de bola, desses de garotos pelos quais ninguém dá nada ainda e, quando ninguém espera, oferece jogadores para ainda manter viva a chama do nosso futebol, tão combalido nos dias atuais.
Jogo num estádio do interior, transmitido pela rede pública, reprisado numa madrugada, João tocando e a partida correndo enquanto paralelamente eu lia jornais. Interrompi a leitura por instantes, fitei a tela e me deparei com um tiro de meta. Não era uma jogada qualquer, era um tiro de meta. No instante, o único ser vivo na tela focada a grande distância era o goleiro, um solitário goleiro com a responsabilidade de reconduzir o jogo carente de torcedores, repórteres e outros participantes - imagem que permaneceu por muitos segundos, dado um bloqueio momentâneo na transmissão. Eis que a televisão me pareceu como um grande quadro, uma monumental aquarela, com aquele solitário menino estático a observar a bola e pensar em como iria chutá-la, para onde e com que força, tudo cercado pelo silêncio que só a voz de João é capaz de fazer ecoar. Mais segundos, mais silêncio, mais solidão do goleiro na tela como se ninguém mais estivesse no estádio a apreciar sua intenção, exceto eu. Quando se pensa em futebol, é certo que muitos imaginam o grande gol, a jogada mirabolante, o passe apurado, o domínio com categoria, o drama do pênalti.
O tiro de meta, meus amigos, é um importante momento marginalizado: difícil a sua consecução terminar em algum dos lance anteriormente descritos. Entretanto, não sei se pelas substâncias e solidão a mais ou alegria de menos, pus-me a contemplar aquela imagem congelada como um princípio de esperança - era um tiro de meta, amigos. Naquele tiro, naquela cobrança é possível identificar até um cotidiano de nossas vidas: é do tiro de meta, após um interrupção, que o jogo recomeça.
Mais substâncias, tracei em minha confusa memória uma relação com minha própria vida, machucada por revezes que deveriam sair por uma imaginária linha de fundo, representados por uma bola. A vida, amigos, ávida por si própria, voltaria após breve intervalo a ser vivida tão logo fosse trocada a bola por outra e a devida reposição pelo tiro de meta seria um recobrar de ânimo, um renascer das cinzas, um poente a abafar a tempestade - talvez seja este o significado da expressão popular "bola pra frente", não vinda de um lançamento primoroso mas sim do desprezado e esquecido tiro de meta. Talvez daí seja a razão do futebol ser tão apaixonante e cobiçado por gente de todo o mundo; no jogo, podemos encontrar relações diretas com nosso viver através da vida e morte do jogo: a derrota pelo gol sofrido e a alegria pelo tento marcado; a beleza da jogada articulada e a besteira da bola perdida; a pressão que não derrota através do chute que vai pela linha de fundo e o recomeçar por, somente por ele, pelo especial tiro de meta.
É preciso entender a força, o vigor e a esperança que um tiro de meta é capaz de mostrar.
É preciso notar a perspectiva que um tiro de meta pode trazer a um jogo do bola, tão preciso quanto um recomeçar na vida depois de uma derrota circunstancial.
Quando a imagem voltou, o goleiro continuou solitário; desferiu o chute e a bola foi para o meio de campo, com vários jovens a disputá-la numa outra imagem.
O estádio continuava vazio e é possível que eu fosse um dos poucos telespectadores.
Depois do revés, o jogo recomeçou tal qual minha vida faz e fará após um desânimo marcante porém passageiro, efêmero feito uma nova bola num canto de linhas de cal.
Paulo Roberto Ândel - 19/05/06
1 comment:
Curioso que o fim do seu texto me remeteu à despedida do Zubizarreta. Não sei se vc lembra. Ele sozinho no estádio vazio após a eliminação da espanha na copa de 98;
Post a Comment