Monday, July 05, 2010

QUINZE ANOS DEPOIS (26/06/2010)












Devia ser perto de quinze para as sete da noite. À minha esquerda, silenciosos como se estivessem cabisbaixos – o que não era possível na situação que descreverei – Dória e Gomão aparentavam tranqüilidade. O concreto do assento gelava como nunca. Perto de nós, poucos milhares de correligionários tomavam coragem para levantar e descer o acesso das arquibancadas, numa verdadeira procissão da derrota. Do outro lado do anel cinza, cinqüenta mil rubro-negros ou setenta, ou noventa mil, berravam pelo barulho de uma multidão no reveillon de Copacabana, comemorando com dez minutos de antecedência o que consideravam o título mais certo de toda a sua história – o centenário da Gávea, no campeonato carioca de 1995. Essa era a fotografia que pude tirar da memória, a última antes de um contra-ataque iniciado por uma defesa de nosso goleiro Wellerson, com os pés – a seguir, a bola na ponta-direita, dois cortes secos de Ailton (que, de longe, eu confundi com Ronald) e o chute no canto direito do goleiro Roger, aquele que se dizia perfeito. E o momento mais feliz que tive no futebol em toda a minha vida. O ápice que jamais será superado. O Fluminense é eterno e gigantesco; por isso, terá títulos e títulos a granel nas próximas décadas. Voltará à América e bisará o título mundial de 1952. Contudo, igual àquele ano incrível, com desfecho mais incrível ainda, quem viu, viu; quem não viu, pode tentar sentir um fiapo de cabelo do que foi aquilo revendo vídeos ou partilhando experiências com amigos mais velhos.

E como se deu aquela apoteose?

No segundo turno da fase final do campeonato carioca, estivemos nove pontos atrás; reduzimos a diferença no jogo final para apenas um. Tudo para o último jogo, conta o favorito campeão da imprensa, tendo o empate a seu favor. O primeiro tempo foi um massacre Tricolor como nunca se viu na história: dois a zero deveriam ter sido pelo menos seis, debaixo de chuva feita pelo nosso futebol. O segundo tempo veio morno, até que um mau agouro sobrevoou o gramado: nosso Branco, velho de guerra, visivelmente desconfortável contra nossa camisa, acertou um balaço no travessão de Wellerson; isso despertou a Gávea e, logo depois, Romário marcaria seu primeiro gol como profissional contra o Fluminense. Ainda muito breve, Fabinho, que nunca tinha chutado bola na vida nem perto da grande área, driblou na direita do ataque e empatou o jogo num belo arremate. Pronto. Tudo parecia perdido. Cinco meses de competição, dois outros Fla-Flus vencidos por nós com total autoridade nos turnos iniciais, nove pontos de vantagem quase recuperados, um primeiro tempo impecável e devastador. Tudo jogado fora? A Gávea empatou o jogo num intervalo de seis minutos, entre os 26 e os 32; a treze minutos do fim, portanto. A massa flamenga explodiu no Maracanã de um jeito como eu nunca tinha visto antes, até então com dezessete anos de freqüência regular no estádio, e nem voltei a ver depois. A nossa torcida, sempre valente e fiel, mas inferiorizada numericamente, achou demais aquele golpe: um jogo praticamente ganho entregue em dois lances isolados, seguidos, afora testemunhar um tri-vice-campeonato (fomos os segundos em 1993 e 1993). Era demais. Nove anos sem títulos. E muitos foram embora das arquibancadas de Mário Filho, o que eu mesmo só não fiz por dois motivos: o primeiro, porque já tinha sentido o péssimo gosto do vice nas temporadas anteriores; segundo, porque como testemunha do monumental gol de Assis em 1983, não poderia deixar de acreditar no que muitos consideravam um milagre. E então Wellerson defendeu a bola no canto direito com o pé, e então o Fluminense foi para o contra-ataque e marcou o gol mais difícil e esperado de toda a sua história, vencendo uma das maiores partidas de todos os tempos com apenas oito jogadores em campo.

Depois do maior gol de todos os tempos, que selaria a maior vitória de todos os tempos, o que lembro era da enorme e colossal torcida da Gávea em absoluto silêncio, enquanto nossas arquibancadas eram cheias de gente chorando, ajoelhada, incrédula, estupefata. Tudo inédito para mim. Lembrei dos meus amigos botafoguenses do passado, que acompanhei várias vezes ao estádio para, na torcida alvinegra, ver fatos semelhantes. Nunca a torcida do Fluminense comemorou um gol daquele jeito. Não houve uma explosão, mas sim uma implosão. Ali, não éramos torcedores ensandecidos perto de testemunhar um dos maiores feitos da centenária história do nosso time, mas sim integrantes de uma procissão divina. E aqueles cinco minutos finais, com os descontos, duraram um ano-luz na escuridão. Antes disso, Gomão continuou impassível, tranqüilo, e Dória teve um espasmo contra a torcida flamenga. Assim como os mortos ressurgiram de suas tumbas para um grande Fla-Flu, nossos milhares de torcedores que deram a causa como perdida invadiram a nossa arquibancada de volta, o que feriu a Gávea de morte: setenta mil pessoas mergulhadas em silêncio e torpor esplêndidos, mesmo com seu time tendo dois jogadores a mais em campo. E os nossos adentrando e colorindo o cinza do concreto.

Quando Leo Feldman apitou o final do jogo, experimentei a sensação diferente de ver o Fluminense ser campeão depois de uma longa temporada, fato que nunca havia me acontecido. Muita alegria, mas também muito choro, não de tristeza, sim de emoção à flor da pele. Talvez não tivéssemos a exata noção da grandeza daquele momento épico e único: uma das maiores vitórias no maior estádio do mundo que abriga o melhor futebol do mundo. Lembro de, mais tarde, ter ido às Laranjeiras, onde Pierri Carvalho chorava ao falar do título; um pedacinho da grama está até hoje numa velha carteira que tenho em casa. No dia seguinte, abraçar minha linda amiga Luciene na faculdade, tão Tricolor, teve sabor de delicia dupla.

Quinze anos depois, o Fluminense teve grandes e maravilhosos momentos, assim como outros bastante tristes, mas já superados. Foram momentos. Vinte e cinco de junho não foi um momento. Não passou. Não passará jamais. Ainda hoje em certos jogos, quando chego mais cedo ao Maracanã, gosto de ir nas arquibancadas verdes do lado direito para ficar perto do que foi meu local naquele dia inesquecível. E revejo o lance, o corte e o gol. Niguém tirará esta imagem de mim durate o resto de minha vida.

Cheguei até esta linha e ainda não falei de Renato. Nem seria necessário. Todos sabem o que foi a passagem de Renato pelo Fluminense naquele ano. Chegou desacreditado, vetado por vários outros times cariocas; o Fluminense era sua última ficha. O campeonato estava badaladíssimo pela presença de Romário, então o melhor jogador do mundo; ao Fluminense, a imprensa, com exceção de Washington Rodrigues, reservava o papel de bobo da corte, de mero coadjuvante. Mergulharam no mar vermelho da ignorância. E Renato não foi apenas o autor de um dos gols mais importantes da história do Maracanã; não foi apenas o melhor jogador do campeonato. Renato É a própria taça de campeão carioca de 1995 em forma de carne, camisa e alma.

Quando vejo uma faixa jocosa da Gávea nos Fla-Flus recentes, acho graça. Quem debocha dos versos de nosso hino, “Quem espera sempre alcança”, está condenado ao maior dos fracassos – e certamente sem a elegância dos milhares de outros rubro-negros que, de pé, aplaudiram a monumental volta olímpica do Fluminense naquele nada distante vinte e cinco de junho, que foi, é e será um dos maiores dias de toda a nossa eterna história. Todas aquelas imagens eu carrego em mim como se fosse agora, há coisa de cinco minutos. Um choro de alegria. O melhor dia de torcedor de toda a minha vida.


Paulo-Roberto Andel

No comments: