Wednesday, February 09, 2011

A AMÉRICA EM DOIS ACTOS

03/07/2008
ACTO I

Talvez existam os deuses do futebol. Particularmente, não creio.

Dou-me o direito do engano, do erro. Respeito todas as crenças e credos, mas não compartilho deles.

Houvesse um grande deus do futebol em pleno exercício, caberia ao Fluminense erguer a gloriosa taça da América ontem. Estava escrito há cinco mil anos, como profetizaria nosso herói Nelson Rodrigues. Acabou o certame, e tivemos a melhor campanha; vencemos todos os jogos em casa; fomos heróicos em partidas contra os poderosíssimos São Paulo e Boca Juniors. Ontem, também. Mas não bastou para o Fluminense ser campeão.

Alguém, não se sabe de onde, rasgou os escritos e com crueldade: esperou os últimos momentos, os últimos chutes a gol, os últimos suspiros – momentos onde, normalmente, temos grande perícia. Não foi o caso desta vez, rasa e pontual vez.

O Fluminense não fez na final uma partida tão grandiosa como aquela contra os argentinos, e nem como o poderoso tricampeão mundial paulista. Ainda assim, fomos melhores que os equatorianos e a vitória no tempo normal foi merecidíssima. É fato que dois pênaltis ocorreram a nosso favor, sobre Washington e Cícero, não marcados pelo péssimo árbitro Baldassi, mas não quer dizer necessariamente que o título estivesse assegurado por isso, pela hipotética marcação. O árbitro argentino foi muito ruim para os dois times, chegando a anular um gol legítimo da LDU que nos destruiria na prorrogação. Bom, se tivesse marcado os dois penais claros, talvez a prorrogação nem acontecesse. Trata-se de um mundo de suposições. Lembro que acertamos a trave e fomos abalroados também. Conca foi um gigante na partida. Neves fez história, sendo o primeiro jogador a marcar três gols numa final da América do Sul, agora também enxertada pelo México. Superamos o gol trágico que sofremos logo aos cinco minutos, com uma reação vigorosa. Vencemos aqui e empatamos a competição.

Vencemos, mas não como das outras vezes. Nosso grande Washington não estava bem, e o mesmo se pode dizer de Marcos Arouca, Gabriel e Thiago, nosso zagueiro continental – Tricolor dentro do peito. Havia nervosismo, a tensão natural de um grande jogo final. Acertamos mais do que erramos, mas sem o brilhantismo de outrora. Ainda assim, o quarto gol era uma possibilidade real, e dele estivemos muito perto. Não aconteceu, entretanto.

Veio e nervosa prorrogação. O Maracanã, abarrotado em gente caindo às vistas a cântaros, era de um só coração, com exceção de parte das cadeiras azuis tomadas pelos bravios equatorianos. Tínhamos total confiança na vitória no tempo extra; entretanto, os cuidados que todos os times tomam num momento desses, onde a falha pode ser capital, acabam tornando a prorrogação muitas vezes num compasso de espera em agonia para as disputas na marca penal – o verdadeiro ai-jesus que povoa até o hino da Gávea. E foi o que aconteceu. A disputa por pênaltis para conquistar a América.

Entendo que seria de uma crueldade desumana colocar a culpa exclusiva pela perda da América em cima dos cobradores penais. O Fluminense deve muito a Darío Conca pela chegada a este momento apoteótico, mágico, que foi o de chegar à final da Libertadores. Deve muito ao Neves, que oscilou mas mostrou brilho, muitas jogadas e gols. Nada a lamentar de Washington, nosso guerreiro, nosso Coração Valente, que fez tudo para estar em campo ontem – e, se não conseguiu mostrar o seu melhor futebol, lutou como todos. O que falar de Renato Portaluppi, que tantas alegrias nos deu dentro do campo e na lateral dele? Ontem, o Maracanã estava com Romerito, com Benedito de Assis, com Edinho, com nossos ilustres e anônimos torcedores vindos de todo o país e do exterior.

Houve erro? Será que realmente houve erro? Ou o futebol não é realmente assim?

Em Laranjeiras, não há espaço para crucificações e torturas. Nossa formação é outra.

Havia um grande adversário contra nós, que nos derrotou no detalhe – onde quem erra menos, vence. Mereceram o título. Onde foi preciso, na vírgula e no hiato, foram melhores.

A tristeza de ter perdido uma taça que escapou entre nossos dedos está em meu coração desde vinte e um de maio. Naquele dia, o Fluminense teve um de seus jogos mais difíceis, enquanto eu velava meu pai em seu quarto – meu pai, que me ensinou a amar este clube, este time que é de um sabor especial em todos os momentos desde que me entendo por gente. Num dos piores dias de minha vida, o Fluminense foi gigantesco como merece ser - e quando Washington bateu forte no peito, tomei para mim mesmo aquela bravura para lidar com a terrível dor da morte, a dor de perder um pedaço de mim.

Conseguimos reverter o resultado que os homens de imprensa tanto deram quanto absoluto e inquestionável nos noventa minutos. Poderíamos ter feito mais; poderíamos ter ganho o título no campo com mais um mísero gol, mas ele não veio. Eu entendi a dor do futebol mais uma vez, quando meu irmão, ainda tão jovem, teve os olhos cheios d’água ao final das cobranças penais – e o Tiba, meu velho amigo Tiba, o Homem de Gelo, mais do que ponderado, apressou-se nervosamente rumo à própria casa. Era o Fluminense mexendo com os corações de seus apaixonados torcedores. Perdemos a taça num detalhe – importante, crucial, mas detalhe. O Brasil parou para nos ver, e entendo que parte dele tenha ficado desapontada.

Hoje é o dia de uma longe noite, o dia que emendou noutro sem terminar. Nossas bandeiras, a vento rasante, são Telê Santana, Tom Jobim, Marcos Carneiro de Mendonça, Preguinho, Nelson Rodrigues. Nossas bandeiras são Parreira, são Assis, são Batatais, são de São Paulo Victor. Estamos, vivos ou mortos, muito vivos. É um dia triste, mas não de luto. Fizemos jus à história que construímos. Fomos dignos. Lutamos até os últimos chutes. Não houve oba-oba ou deslumbramento. Fomos superados por um adversário num desempate, depois de uma grande vitória.

A América nos escapou por um detalhe. Nela, não fomos coadjuvantes, tal como os preferidos da imprensa. Fomos protagonistas. O que, hoje, parece dor, pode ser o início de uma nova era, da qual nem desconfiamos por ora.

Eram três horas da manhã. Meu irmão me perguntava se o jogo no próximo domingo era no Serra Dourada. Respondi que sim. E ali, tantos anos depois, eu entendi que o Fluminense nasceu para disputar um esporte que não é somente o futebol, mas sim uma competição que nunca termina, com uma força que nunca seca. O Fluminense nasceu com a vocação do Fla-Flu de Nelson Rodrigues: não vai morrer, nunca vai acabar. Vivemos uma tristeza momentânea, e só. O sol nascerá, como já disse Cartola, um de nossos poetas imortais.

Nós voltaremos à América.

Vivos e mortos serão fiéis testemunhas.


Paulo-Roberto Andel



09/02/2011

ACTO II

Quem espera sempre alcança, como diz a nossa história.

Foram quase mil dias e mil noites de espera. Uma vigília interminável.

Sofremos. Lutamos. Choramos.

Vencemos.

Torcer pelo Fluminense é muito mais do que torcer para um time de futebol, seja ele um grande campeão ou não. Ser Tricolor é desprezar obviedades, é trocar a maioria avassaladora pela minoria sofisticada. É não se curvar a falas e textos que, de tão repetidos, soam como chapa-branca imposta. É desafiar definições.

Certa vez, o maior cronista de futebol de todos os tempos, Nelson Rodrigues, escreveu que às vezes, o torcedor do Fluminense pode até deixar de ir ao estádio pelo comodismo de casa, mas nas horas decisivas lá está a urrar nas arquibancadas e celebrar vitórias. Quem descreveria o Tricolor de forma melhor? Ninguém.

Nossas vitórias são caleidoscópicas. Vejam o grande Tricampeonato conquistado em 2010, contra tudo e contra todos. As batalhas épicas de 2009 e 2008. Falo apenas dos últimos três anos, imaginem os outros cento e cinco. Pois bem: depois daquela longa noite de julho, terminada a série de cobrança de penais, o Fluminense era um time condenado à morte por seus inimigos e serviçais daqueles que têm horror às Laranjeiras, muitas vezes porque não entendem que um jogo de futebol é tão-somente um jogo de futebol, com tudo o que de belo e simples isso possa representar.

Queriam a nossa carne viva. Riram. Tripudiaram. Decretaram o fim do Tricolor. Houve uma campanha midiática tão pesada que o Fluminense chegou a adernar – mas não afundou. Insistem em resumir nossa história centenária a um péssimo momento de quinze anos atrás – ou a um idiota que resolveu abrir uma champagne. Como negar a história de Marcos Carneiro de Mendonça, Preguinho, Hércules, Tim, Castilho, Telê, Pinheiro, Denílson, Edinho, Ricardo, Branco, Paulo, Assis, Ézio, Renato, Thiago, Conca? Como negar a história viva de Nelson Rodrigues? Não podemos admitir o triunfo da imbecilização que se faz ao tentar diminuir o papel do Fluminense na vida brasileira, dentro e fora das quatro linhas.

Houve quase mil dias e mil longas noites de espera.

Nada dura para sempre, nem a pior das dores.

Nossas crianças, mulheres, homens e idosos choraram a perda daquele título que era tão nosso, tão evidente, com nossa campanha superior à de muitos times campeões do passado. O problema é que nada é fácil para o Fluminense: nós e nossos antepassados construímos uma grande história sempre lutando contra fortíssimos interesses. Tentaram nos impingir sempre uma pecha de clube da “elite” (com aspas pelo tom jocoso que emprestam a este termo), alheio às agruras do povo humilde e desligado da cena cotidiana real. Quanta bobagem! Não temos culpa de que nossos torcedores mais carentes financeiramente têm classe até para andar com uma camisa rasgada. Não podemos ser apedrejados porque nossa torcida lê, ouve, debate e tem opinião própria em vez da construída em manchetes de cinqüenta centavos. O Fluminense é um time de todos: brancos e pretos, ricos e pobres, nascidos em todos os berços. O Fluminense não é o mais-querido, mas sim o tão-querido-quanto. Ponto.

Houve o choro de 2008. Uma perda que parecia infinita. Mas estava escrito que, um dia, nós voltaríamos à América e que mortos e vivos seriam fiéis testemunhas deste novo feito.

Foram quase mil dias e mil noites insones.

Estamos de volta.

A história tratou de recolocar o gigantesco Fluminense em seu devido lugar.

Paulo-Roberto Andel

1 comment:

Nícolas Junqueira said...

Depoimento de quem viveu a Libertadores:
http://golingol.blogspot.com/2011/02/marcas.html
O Flu VOLTOU!